terça-feira, 25 de agosto de 2009

USF SANTANA - RESENHA SOBRE O FILME ESTAMIRA

SOBRE A TERCEIRA MARGEM DO RIO, ESTAMIRA E A VISITAÇÃO À COMUNIDADE LEMOS TORRES – EM SANTANA.

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.(...)
Ninguém é doido. Ou, então, todos.”
(João Guimarães Rosa – Primeiras Estórias)



O conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, relata de maneira bastante poética a trajetória de um pai de família que – ao se perceber no início da sua loucura – decide viver à margem da sociedade, assim cria uma terceira margem para o rio e lá vivendo até a sua morte. Guimarães, que – de formação – era médico, percebia o sofrimento dos acometidos por transtornos mentais e a incapacidade desta sociedade os acolher em seu meio. Não é à toa que – transcorridos 47 anos da publicação daquele conto, hoje, no Brasil ainda se debate bastante sobre a Reforma Psiquiátrica.
Estamira – em tempos de novelas indianas – poderia, para quem ainda não assistiu ao filme, significar a próxima novela das oito: em uma cidade lá no leste do Oriente Médio, chamada Estamira , vive uma mulher, com nome homônimo à sua terra natal, aprisionada pela cultura arcaica do Talibã, foi condenada a se casar com um cruel e asqueroso senhor Talibanês, mas o seu coração está entregue ao jovem forte, dominador “Libertanês”. Bem, isso é o que – talvez, algum “noveleiro” escrevesse.
Contudo, o filme revela uma outra Estamira – cuja história de vida é a “cara” das desigualdades Brasileiras. Assim, Marcos Prado, um exímio fotógrafo e sensível cineasta tenta – em 115 minutos – mostrar a trajetória de uma mulher cujos abusos se iniciaram na mais tenra idade (o primeiro estupro aos nove anos), a compulsória experiência no prostíbulo – desde os doze anos até os dezessete, quando conhece aquele que viria a ser o seu primeiro esposo. Semelhante a um conto de fadas, a protagonista encontrou o príncipe que a retirou das masmorras da prostituição e lhe deu um lar, na Rua Castelo de Guimarães... Embora pareça um conto de fadas, na película não se pode dar por encerrada a história com esse desfecho, porque não tardou muito para as brigas, os maltratos, ciúmes e todos os desajustes familiares destronarem a “princesa” do seu “Castelo”. Ademais, sob a pressão de Lepoldo, o marido, Estamira decide internar forçadamente a sua genitora (fato do qual nunca viria a se perdoar) que apresentava transtornos mentais – herança herdada pela protagonista. Mais tarde, ela, Estamira, também será levada amarrada a um hospício, semelhante a um monstro – eram assim tratados os doentes psquiátricos (ainda bem que vem mudando!!!)mas consegue se livrar da internação. Para piorar ainda mais a vida daquela personagem, com os seus delírios, ousa blasfemar contra Deus-um ser intocável numa sociedade erguida por pilares judaico-cristãos, como a nossa. Ora, só um “doido” teria uma coragem dessas!!!
Só bastavam os estupros para ter desmantelado qualquer pessoa por toda uma existência...
Destarte, Estamira parece não caber nas margens dessa ‘civilização’ e decide criar, semelhante ao conto de Guimarães , uma terceira margem para viver. E encontra, como corrobora a placa exibida no documentário: GRAMACHO – ÚLTIMA SAÍDA – 1Km.
Então, o Jardim Gramacho, grande aterro sanitário no Rio de Janeiro, na realidade um eufemismo de “lixão”, é – de fato – uma porta que se abre com mais de uma saída, como diria João Cabral de Melo Neto, onde cada individuo é visto de acordo com a sua idiossincrasia, são seres humanos que misturados aos lixos se transformam em descuidos sociais.
Lá, no lixão, Estamira vive mais tranquila do que no hospício, parece ter amigos. Impressiona ainda o fato de – apesar de trabalhar sobre o lixo, a sua casa é muito limpa com o terreiro bem varrido! Ali, ela se sente tanta gente que é capaz de repetir o próprio nome constantemente, como se dissesse EU EXISTO! Há quem pense se tratar de uma louca, com uma eloqüência exacerbada, mas muitas das reflexões pronunciadas por ela, remetem às provocações de Sócrates, Platão, Nietzsche, Kant, Schopenhauer, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Augusto Cury e tantos outros que se debruçaram sobre a alma humana. Sob a lente de Marcos Prado, Estamira ganha visibilidade e expande sua voz para uma sociedade que insiste em esconder favelas com outdoors, negligencia e abusa das suas crianças, aceita as desigualdades sociais como destino e modifica a taxionomia – reduz seres humanos a urubus!!!
Infelizmente, a Comunidade Lemos Torres – em Santana – não se deparou com nenhum Marcos Prado, pelo menos no nosso grupo-para mostrar ao povo recifense, quiçá ao Brasil, a tensão vivida por aquela comunidade.
Hoje, Lemos Torres está situada em uma área nobre da Região Metropolitana do Recife, envolta por arranha-céus, shopping, quartel para filhos de ricos (sim, pois o CPOR foi criado para alistamento da classe rica do Estado, porque pobre vira soldado, mas rico se torna Oficial da Reserva!!!), Bares, Restaurantes e – até – Mac Donald’s (Tenha um Mac Dia Feliz – povo da Lemos Torres, poderia ser a voz daquele palhaço!), exatamente na entrada da comunidade.
Embora, geograficamente, esteja localizada em uma região privilegiada, aquela comunidade sofre com desemprego, lixos, casas de palafitas sobre um canal, crianças mal nutridas, filaríose, drogas (inclusive o alcoolismo), falta de água e ainda a tensão de saber que – a qualquer momento- serão despejados, mesmo com indenização, para algum lugar dessa cidade, sob o argumento da construção de uma perimetral naquele lugar, mas se sabe dos interesses financeiros das grandes construtoras por aquela área- são “os espertos ao contrário”...
Pois é, Comunidade Lemos Torres, não transformaremos você em filme, mas – oxalá – muitas pessoas leiam o blog!!!
Ao terminar o filme, volta-se à realidade. Comentar-se-á a película por um dia, uma semana, um mês – talvez. Todavia, as impressões serão apenas as (pré) sentidas, porque as verdadeiras continuarão lá com as milhares de Estamiras por esse Brasil a fora: as mulheres violentadas, as crianças miseráveis, as pessoas portadoras de deficiência, os negros, os homossexuais, os desempregados, os índios, os nordestinos, os analfabetos e toda uma legião de excluídos, que – forçadamente – terminam por encontrar uma terceira margem para tentar sobreviver.
E a nós, futuros doutores, médicas e médicos, Estamira faz um alerta: “Eu conheço médico direito, ela é uma copiadora.eles estão dopando quem quer que seja com um só remédio”, mais ainda “ A tua lucidez não te deixa ver...” e “ Eu quero que a minha verdade seja escutada”, assim, todas as vezes que não nos dispusermos à escuta, a compreensão ao entendimento, deixando-nos guiar apenas pela “lucidez” da técnica, dificilmente, poderemos tratar doentes – curaremos apenas a doenças, seremos uma espécie de “trocadilho” e quando se apagarem as luzes do nosso palco estaremos a ver Estamira, velha, indignada a gritar aos nossos ouvidos: Você não é inocente não, é um “esperto ao contrário”, “esperto ao contrário”!!!

2 comentários:

  1. Ficou muito criativa a associação entre a obra de João Guimarães, Estamira e a comunidade Lemos Torres. Entender que existe milhares de Estamiras e locais como o lixão do Rio na nossa esquina - às vezes nem tão lixão assim, porém não menos exposto às mazelas da vida - e perceber as razões que estão ali por trás é um primeiro passo para transformação social e contribuição para a melhoria da qualidade de vida

    ResponderExcluir
  2. Baixar o Documentário - Estamira - http://mcaf.ee/tvjf4

    ResponderExcluir