segunda-feira, 24 de agosto de 2009

USF CÓRREGO DA BICA

Estamira

Tudo é Estamira.
Tudo faz parte de Estamira.
Estamira é assim, vê o mundo e participa dele, muito embora, ao olhar dos outros, tudo o que há nela é loucura. Logo, deveria ser loucura o que ela diz. Mas não, é a verdade.

É verdade que há lixo na gente.
É verdade que nós vivemos para trabalhar.
É verdade que a natureza é insultada.
É verdade que nós mesmos temos raiva do homem.
É verdade que não poupamos nada.
É verdade que nós achamos que aprendemos na escola.
É verdade que nós, muitas vezes, duvidamos de Deus.
É verdade que nos sentimos presos à vida e por isso não somos livres.
É verdade que somos indivíduos eternamente doentes por tudo isso e muito mais.
Estamira não é isso. “Isso são Eles”.

Ela apenas vive no lixo. Incapaz de fazer mal a alguém sobrevive em uma profunda depressão que é resultada de uma vida violenta e repleta de traições. No filme, o ambiente (o lixão de Natal) representa os sentimentos negativos de Estamira pela vida, mas ele não modifica em nada seu espírito. “A terra é indefesa e a minha carne é indefesa. A minha alma não é indefesa não”. Sua loucura a mantém longe do mundo real, seus devaneios são os maiores responsáveis pela permanência dela naquele lugar. Ele a torna mais resistente. Há permanente silêncio nos discursos feitos no lixão. Isso porque só existe Estamira naquele lugar, não em corpo (há outros catadores de lixo), mas em espírito. A voz dela é o que interessa para o diretor porque ela é a pessoa que tem “lucidez nos olhos e é ciente na mente”, ou seja, ela consegue ver dimensões humanas que, muitas vezes, nós não alcançamos. A responsabilidade e a solidariedade do indivíduo para com o mundo é o que cerne as visões de Estamira.

Estamira não vive por dinheiro. ”Dinheiro sou eu que faço”. Ela conhece o prazer do labor e a necessidade do descanso. Ela cita partes da bíblia no filme para argumentar, “Trabalhar, não sacrificar - alimentai o corpo com o suor do vosso rosto, não com sacrifício”. Ela enxerga o péssimo modo de vida dos outros, “os trocadilo”, que vivem trabalhando para consumir mais e mais sem poupar nada. Acumulam muito lixo útil, destruindo, assim, o espaço em que vivem. “Quem economiza tem”, diz Estamira que nos avisa, também, que a natureza não é o espaço, ela é a nossa casa – “O cometa (comandante da natureza) é aqui em baixo, lá em cima é só o reflexo”. Quando nós falamos em preservar a natureza, sempre nos excluímos dela, reservas ecológicas são construídas. Estamira nos lembra que fazemos parte da natureza e mesmo assim temos raiva do próprio homem, homem-natureza. Fazemos mal ao próximo por ganância. “Os trocadilo é tudo coisa ruim” e ela continua: “não tenho raiva do homem, tenho dó... os homem é o trocadilo dos inocentes ao contrário”.

Estamira também tem muito a ensinar sobre conhecimentos gerais. Não se estuda sobre a vida, se vive a vida - “Vocês não aprendem na escola, vocês copiam, vocês só aprendem com as ocorrências”. Estamira aprendeu como a vida pode ser difícil, “não tenho mais dó nem de Jesus nem de escravo”, para as pessoas que não fazem “trocadilos”. Ela deixou completamente de acreditar em Deus porque ele não resolveu o problema de ‘desfazer’ os homens. O problema do mundo é o homem, segundo Estamira – “...a solução é o fogo! Queima todos os ser e põe outro no lugar”. O homem que acha que só porque entendeu seu corpo (“o controle remoto”) pode ter saúde e controlar em curto prazo sua vida. Com um olhar na vida de Estamira se entende que saúde não é o que nós temos. Se Estamira é doente porque é ‘louca’, o que se diz do filho dela? O homem considerado normal, que a abandonou porque estava doente? Ou dos homens que a estupraram? Do marido que a traiu? Dos que jogam comida fora? Dos que jogam lixo na rua? Nós somos tão loucos e tão doentes quanto Estamira. Ela, pelo menos, conseguiu uma lucidez para a paz de sua alma, embora não do seu coração. Este, doente de ódio pelo ex-marido, pelos homens e pelas ‘injustiças de Deus’.

Tendo sido, antes, uma pessoa religiosa, os sofrimentos passados por Estamira fizeram-na uma pessoa descrente. Talvez, a necessidade de acreditar em algo que nos sustente e proteja fez com que ela se colocasse, espiritualmente, em uma posição superior aos demais humanos, uma maneira de se reerguer numa vida desacreditada e injusta. Isolada com o seu poder e com raiva do mundo, Estamira vive e comporta-se, ao olhar dos outros, como uma louca.

A loucura está no fato de nomear e tentar explicar no ‘seu mundo’ o mundo externo. Quereríamos nós que o mundo externo fosse o mundo de Estamira. Seria um mundo bem mais justo, sem excessos e enganações (trocadilhos), porque ela entedia que o gás do lixo fazia mal, assim como os homens trocadilhos de hoje. “...as bolha é tóxico. Tem gente que não se habitoa”, assim como ela mesma não se habituou.

Um comentário:

  1. Com um início poético, a resenha desse grupo teve um olhar bem psicológico. muito bom turma.

    Mariana

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