terça-feira, 25 de agosto de 2009

Comunidade Córrego da Furtuna

O documentário “Estamira” relata a história de uma senhora em meio a um lixão. Um filme bastante crítico que expõe, claramente, o descaso governamental para com a sociedade mais carente, não deixando de enfocar a influência do meio na questão Psico-social
e consequentemente na saúde, pois a mesma não é somente o bem estar físico, e sim uma complexa rede que inclui fatores sociais, ambientais e psicológicos. Além disso, possui elevada carga ética e emocional que são ministradas pelas falas da personagem Estamira.
Estamira é uma mulher que teve uma vida conturbada desde a infância. Quando criança sofreu abuso sexual, fato que volta a acontecer durante sua vida adulta, e que a faz perder gradativamente a confiança no outro. O fato de a personagem ter passado por relacionamentos difíceis –nos quais, a traição se fez presente- e que a levara a abdicar de seu relacionamento com a mãe, repercutiu de forma decisiva na sua “qualidade de vida”. E a última separação parece ter sido o “limite” do que se pode suportar. Ela, então, se entrega a miséria do lixão.
“Montanhas que fumaçam” esta é a definição do meio que Estamira vive. Não são vulcões, mas montanhas de lixo em processo de decomposição que liberam gases tóxicos e permitem a proliferação de inúmeras infestações de animais nocivos à saúde humana. Dessa forma, doenças como a leptospirose, as infecções intestinais, o botulismo, a cólera e a dengue tornam-se freqüentes e alarmantes. Logo, a constatação de que homens, insetos e urubus competem pelos restos encontrados no lixão é intrigante, e nos faz refletir sobre a nossa posição diante da dor do outro.
Nessas condições, não se pode falar de “saúde” física quando ao homem é negado o direito ao acompanhamento psicológico, social e educacional. Acompanhamentos, estes, que não apenas permitam uma melhor qualidade de vida para o indivíduo doente, mas que, também, atuem de forma preventiva.
No documentário, falas como: “Eu sou Estamira, eu to cá, eu to lá, eu to em todo lugar’’; “esqueceram da gente, somos tratados como monstros”, revela a invisibilidade perante o governo e a sociedade. Mostram, também, a proporção do problema e até onde pode chegar a falta de cuidado e responsabilidade daqueles que governam. Portanto, a percepção de que somos todos sujeitos e agentes no meio e que não podemos permitir a existência de “Estamiras” em nossa sociedade, é fator fundamental para a transformação do meio. E para isso, é necessário nosso envolvimento nos questionamentos, na cobrança e nas questões político-sociais.
Em Estamira pouco pode se falar de esperança, já que ela perdera - segundo a medicina - o senso comum, a percepção do real, a crença no outro e naquilo que ele pode oferecer. Já não são válidas as instruções médicas, tão pouco, as orientações e interferências, tão pouco, as orientações e interferências daqueles que a cercam. Para a personagem, a vida se resume ao que o lixão proporciona. São poucos os momentos de 'lucidez', contudo, suficientes para que nela seja despertado o desejo de justiça e revolta social.

USF SANTANA - RESENHA SOBRE O FILME ESTAMIRA

SOBRE A TERCEIRA MARGEM DO RIO, ESTAMIRA E A VISITAÇÃO À COMUNIDADE LEMOS TORRES – EM SANTANA.

“Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.(...)
Ninguém é doido. Ou, então, todos.”
(João Guimarães Rosa – Primeiras Estórias)



O conto “A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa, relata de maneira bastante poética a trajetória de um pai de família que – ao se perceber no início da sua loucura – decide viver à margem da sociedade, assim cria uma terceira margem para o rio e lá vivendo até a sua morte. Guimarães, que – de formação – era médico, percebia o sofrimento dos acometidos por transtornos mentais e a incapacidade desta sociedade os acolher em seu meio. Não é à toa que – transcorridos 47 anos da publicação daquele conto, hoje, no Brasil ainda se debate bastante sobre a Reforma Psiquiátrica.
Estamira – em tempos de novelas indianas – poderia, para quem ainda não assistiu ao filme, significar a próxima novela das oito: em uma cidade lá no leste do Oriente Médio, chamada Estamira , vive uma mulher, com nome homônimo à sua terra natal, aprisionada pela cultura arcaica do Talibã, foi condenada a se casar com um cruel e asqueroso senhor Talibanês, mas o seu coração está entregue ao jovem forte, dominador “Libertanês”. Bem, isso é o que – talvez, algum “noveleiro” escrevesse.
Contudo, o filme revela uma outra Estamira – cuja história de vida é a “cara” das desigualdades Brasileiras. Assim, Marcos Prado, um exímio fotógrafo e sensível cineasta tenta – em 115 minutos – mostrar a trajetória de uma mulher cujos abusos se iniciaram na mais tenra idade (o primeiro estupro aos nove anos), a compulsória experiência no prostíbulo – desde os doze anos até os dezessete, quando conhece aquele que viria a ser o seu primeiro esposo. Semelhante a um conto de fadas, a protagonista encontrou o príncipe que a retirou das masmorras da prostituição e lhe deu um lar, na Rua Castelo de Guimarães... Embora pareça um conto de fadas, na película não se pode dar por encerrada a história com esse desfecho, porque não tardou muito para as brigas, os maltratos, ciúmes e todos os desajustes familiares destronarem a “princesa” do seu “Castelo”. Ademais, sob a pressão de Lepoldo, o marido, Estamira decide internar forçadamente a sua genitora (fato do qual nunca viria a se perdoar) que apresentava transtornos mentais – herança herdada pela protagonista. Mais tarde, ela, Estamira, também será levada amarrada a um hospício, semelhante a um monstro – eram assim tratados os doentes psquiátricos (ainda bem que vem mudando!!!)mas consegue se livrar da internação. Para piorar ainda mais a vida daquela personagem, com os seus delírios, ousa blasfemar contra Deus-um ser intocável numa sociedade erguida por pilares judaico-cristãos, como a nossa. Ora, só um “doido” teria uma coragem dessas!!!
Só bastavam os estupros para ter desmantelado qualquer pessoa por toda uma existência...
Destarte, Estamira parece não caber nas margens dessa ‘civilização’ e decide criar, semelhante ao conto de Guimarães , uma terceira margem para viver. E encontra, como corrobora a placa exibida no documentário: GRAMACHO – ÚLTIMA SAÍDA – 1Km.
Então, o Jardim Gramacho, grande aterro sanitário no Rio de Janeiro, na realidade um eufemismo de “lixão”, é – de fato – uma porta que se abre com mais de uma saída, como diria João Cabral de Melo Neto, onde cada individuo é visto de acordo com a sua idiossincrasia, são seres humanos que misturados aos lixos se transformam em descuidos sociais.
Lá, no lixão, Estamira vive mais tranquila do que no hospício, parece ter amigos. Impressiona ainda o fato de – apesar de trabalhar sobre o lixo, a sua casa é muito limpa com o terreiro bem varrido! Ali, ela se sente tanta gente que é capaz de repetir o próprio nome constantemente, como se dissesse EU EXISTO! Há quem pense se tratar de uma louca, com uma eloqüência exacerbada, mas muitas das reflexões pronunciadas por ela, remetem às provocações de Sócrates, Platão, Nietzsche, Kant, Schopenhauer, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Augusto Cury e tantos outros que se debruçaram sobre a alma humana. Sob a lente de Marcos Prado, Estamira ganha visibilidade e expande sua voz para uma sociedade que insiste em esconder favelas com outdoors, negligencia e abusa das suas crianças, aceita as desigualdades sociais como destino e modifica a taxionomia – reduz seres humanos a urubus!!!
Infelizmente, a Comunidade Lemos Torres – em Santana – não se deparou com nenhum Marcos Prado, pelo menos no nosso grupo-para mostrar ao povo recifense, quiçá ao Brasil, a tensão vivida por aquela comunidade.
Hoje, Lemos Torres está situada em uma área nobre da Região Metropolitana do Recife, envolta por arranha-céus, shopping, quartel para filhos de ricos (sim, pois o CPOR foi criado para alistamento da classe rica do Estado, porque pobre vira soldado, mas rico se torna Oficial da Reserva!!!), Bares, Restaurantes e – até – Mac Donald’s (Tenha um Mac Dia Feliz – povo da Lemos Torres, poderia ser a voz daquele palhaço!), exatamente na entrada da comunidade.
Embora, geograficamente, esteja localizada em uma região privilegiada, aquela comunidade sofre com desemprego, lixos, casas de palafitas sobre um canal, crianças mal nutridas, filaríose, drogas (inclusive o alcoolismo), falta de água e ainda a tensão de saber que – a qualquer momento- serão despejados, mesmo com indenização, para algum lugar dessa cidade, sob o argumento da construção de uma perimetral naquele lugar, mas se sabe dos interesses financeiros das grandes construtoras por aquela área- são “os espertos ao contrário”...
Pois é, Comunidade Lemos Torres, não transformaremos você em filme, mas – oxalá – muitas pessoas leiam o blog!!!
Ao terminar o filme, volta-se à realidade. Comentar-se-á a película por um dia, uma semana, um mês – talvez. Todavia, as impressões serão apenas as (pré) sentidas, porque as verdadeiras continuarão lá com as milhares de Estamiras por esse Brasil a fora: as mulheres violentadas, as crianças miseráveis, as pessoas portadoras de deficiência, os negros, os homossexuais, os desempregados, os índios, os nordestinos, os analfabetos e toda uma legião de excluídos, que – forçadamente – terminam por encontrar uma terceira margem para tentar sobreviver.
E a nós, futuros doutores, médicas e médicos, Estamira faz um alerta: “Eu conheço médico direito, ela é uma copiadora.eles estão dopando quem quer que seja com um só remédio”, mais ainda “ A tua lucidez não te deixa ver...” e “ Eu quero que a minha verdade seja escutada”, assim, todas as vezes que não nos dispusermos à escuta, a compreensão ao entendimento, deixando-nos guiar apenas pela “lucidez” da técnica, dificilmente, poderemos tratar doentes – curaremos apenas a doenças, seremos uma espécie de “trocadilho” e quando se apagarem as luzes do nosso palco estaremos a ver Estamira, velha, indignada a gritar aos nossos ouvidos: Você não é inocente não, é um “esperto ao contrário”, “esperto ao contrário”!!!

USF - Dois Unidos (Bianor Teodósio)

Filme Estamira
Resenha Crítica
A mente humana é capaz de realizar diversos feitos a fim de fugir de uma realidade cruel muitas vezes imposta ao indivíduo. Tal habilidade, os motivos que levam o homem a utilizá-la e o nível de alienação apresentado são abordados no documentário Estamira. O filme também aborda temas como a vida nos aterros sanitários e a miséria no Brasil.
O documentário revela a história de vida de uma mulher chamada Estamira, 63 anos de idade, que trabalha há mais de vinte anos num aterro sanitário, onde mais de oito mil toneladas de lixo, produzido no Rio de Janeiro, são descarregadas por dia. Estamira é viúva, sofre de distúrbios mentais e já foi internada em um hospital psiquiátrico pelos seus três filhos, fato que até hoje não perdoa. A protagonista do documentário também sofreu abuso sexual pelo pai, foi estuprada três vezes e já se prostituiu. Ela cresceu num ambiente familiar conturbado, fase em que presenciou diversas brigas entre seus pais, alem de ter sido traída pelo seu marido durante seu casamento infeliz.
O filme também aborda outra questão social: pessoas que vivem do lixão e estão susceptíveis a várias doenças, devido à exposição e contato com o lixo sem a necessária proteção, estando sujeitos a infecções bacterianas em geral e a problemas respiratórios devido à queima do lixo. Essa situação é rotina não só da personagem, mas de muitos brasileiros que não são suficientemente informados sobre os riscos da exposição ao lixo ou que não tem outra opção de sustento, senão a exploração do material.
Devido a tantas dificuldades encontradas por Estamira durante sua vida, ela é inconformada e revoltada não só com o sistema (de acordo com o relacionamento e a organização social), mas também com o próprio Deus, que em sua opinião, não existe, uma vez que ela já sofreu tanto e Ele não fez nada para ajudá-la. Ela também se recusa a ser ajudada no tratamento por uma sociedade hipócrita, muitas vezes se voltando até contra os filhos, fator responsável por ela abandonar o tratamento psiquiátrico oferecido pelo SUS logo que começou.
Apesar de suas perturbações, incluindo a criação de vozes, lugares e até situações, Estamira vive momentos de certa lucidez, nos quais defende, por exemplo, a importância do trabalho na formação do caráter e condena o trabalho em forma de sacrifício Ao qual são submetidos não só ela como também a população mais pobre em geral. Ela também apóia a igualdade social e a implementação do sistema comunista de governo. Apesar de fugir de uma realidade inconcebível, Estamira tem consciência de que sofre de distúrbios mentais e do que acontece no mundo ao seu redor, fator importante na formação de sua opinião.
A história que, na ausência de uma abordagem aprofundada, parecia mais um caso de necessidade de cuidados psiquiátricos se torna, nas mãos do diretor, uma envolvente trama que trata, ao mesmo tempo, de problemas sociais importantes, como a miséria, a saúde pública e o perigo a que as pessoas que trabalham no lixo estão sujeitas, além de trabalhar as razões que levam um ser humano a desenvolver problemas mentais, através da reconstrução do seu passado. Além disso, o diretor enfatiza o nível de lucidez e o potencial de diálogo apresentado por Estamira, desmistificando o fato de portadores de problemas mentais não serem capazes de ter coerência no raciocínio e uma visão crítica social bem elaborada.

USF Peixinhos- "Controlando a minha maluquez, misturada com minha lucidez."

Em um aterro sanitário do Jardim Gramado, em Duque de Caxias,sobrevive ESTAMIRA , uma mulher marcada pela dor , pelo consciente e inconsciente , pelo desprezo e , como ela mesma relata ,“com a missão de revelar a verdade, somente a verdade”.Tal personagem , através dos seus constantes “delírios críticos” e ínfimos momentos de sobriedade , deixa transparecer as intimas condições físicas, psíquicas e sociais vivenciadas pelos moradores dos aterros sanitários , trazendo a tona não só uma realidade local, mas um condição presente em todas as regiões no Brasil.
Como um dos temas retratados tem-se o desperdício, motivado por um padrão consumista, que induz à criação de cidadãos desinteressados com o bem coletivo. Tal fato leva à produção desenfreada e ao acúmulo, cada vez mais freqüente nas grandes cidades, de um lixo utilizado por uma população que orbita em torno de locais à procura de comida, vestuário, materiais para a construção de moradias paupérrimas e de trabalho. A exemplo, tem-se o lixão da Muribeca, no Recife, que comporta diariamente mais de 1200 cidadão que catam, em média, 2400 toneladas de lixo por dia, demonstrando o cruel paradoxo social de uma cidade que não é capaz de assegurar uma condição digna de trabalho, moradia e perspectiva de vida para todos.
Outro assunto de fundamental importância, relatado nesse documentário, refere-se ao abuso sexual sofrido pelos catadores. As maiores vítimas são do sexo feminino, uma vez que, desprotegidas em suas próprias residências e obrigadas a desbravar as noites e os dias em locais insalubres, terminam tornando-se vulneráveis aos agressores, seres incapazes de respeitar a dignidade do outro, e que, em alguns casos, contaminam suas vítimas, com doenças sexualmente transmissíveis e provocam transtornos e lesões emocionais irreparáveis. Como paradigma, tem-se o relato da filha de ESTAMIRA, Carolina, ao descrever as cenas de tortura física e desprezo humano sofrido por sua mãe, ao ser estuprada duas vezes no centro da cidade .
Os problemas relatados anteriormente, não apenas marcam a vida dessas pessoas, mas refletem no aumento de investimentos em profissionais destinados à minimização de doenças de caráter neurofisiológico e na compra de medicamentos para o tratamento adequado do paciente carente . Além das citadas observações, ao longo do filme é notória uma crítica veemente ao descaso médico, no seu processo de atendimento. Muitos profissionais de saúde tratam os pacientes como uma máquina fisiológica, não correlacionando o seu contexto social aos problemas apresentados e desrespeitando a necessidade de tratamentos compatíveis com a realidade de cada cidadão. Esse cenário norteia a temática final do documentário e a vida real desses moradores e trabalhadores de lixões.
Enfim, como todo filme que retrata uma realidade social marcada pelo determinismo, no qual o homem é tido como um mero produto do meio, ESTAMIRA cheira à revolta, à descrença (“Que Deus é esse?” “Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado ...”Quem andou com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com deboches , largou de morrer ?” ....) e a lixo , o “lixo de pessoas” que a sociedade ajuda a criar todos os dias .

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

APS - Clube dos Delegados

“Estamira está em todo lugar”. A frase, tantas vezes repetida por Estamira, só nos faz refletir o quão de realidade que ela representa, principalmente nas grandes cidades.
A Estamira esquecida das periferias, dos lixões, dos morros, das ruas. Estamira que vive à margem da sociedade, sem saúde, sem moradia, sem comida, sem condições dignas de viver.
Que teve uma infância difícil, molestada pelo padrasto na adolescência, acaba se prostituindo, tem um casamento marcado pela violência e pela infidelidade e acaba em uma velhice sozinha, sem esperança e sem fé. Como cobrar a fé e a crença em Deus, de uma pessoa que teve toda a sua vida marcada pela desgraça, que nunca teve a certeza da existência de Deus ao seu lado? Um Deus inventado por seres humanos para poderem justificar suas maldades. Estamira só acredita naquilo que ela pode ver e tocar. “Um coqueiro é real, Deus não é real”.
Mulher com problemas mentais, mas que muitas vezes camufla muita sabedoria em sua falta de lucidez, com o chamado “trocadilho”. Revoltada com a mentira e a hipocrisia, Estamira cita várias vezes em seus discursos que não existe mais inocente, o que há, é o esperto ao contrário.
O Documentário mostra o descaso a que essas tantas “Estamiras” são submetidas, revelando as condições de saúde social e mental, que são bastante precárias e e da loucura, que foi para ela, uma forma de fuga, criando um mundo imaginário, onde ela não precisa mais pensar na sua realidade.
Em um olhar mais crítico, “mira”, em espanhol, significa “olhar”. Sendo assim, “Esta-mira” significaria um olhar mais humano das mazelas sociais e da realidade vivida, por uma simples catadora de lixo de Jardim Gramado, que se sente feliz por uma simples coisa: sair do lixão (trabalho) e ter um teto sagrado (barraco), para descansar todos os dias. Estamira desemboca no lixo das misérias humanas, da mentira, da canalhice, da vergonha. Ela é contra o descaso, a imoralidade, a falta de humildade. Uma mulher que pensa no bem coletivo e diz: “Quando eu desencarnar, eu quero ajudar alguém” e “Tenho dó dos homens”.
Em suas confusões, ela faz muitas reflexões como: “Deus é o próprio trocadilho”, e “Catadores de lixo são escravos de libertos.”
Estamira é um misto de filosofia, loucura e lucidez. Todos precisam de Estamira, ela está em todo lugar, tudo mais é resto e descuido.



Título Original: Estamira
Gênero: Documentário
Duração: 115 min.
Ano: Brasil - 2006
Distribuidora: Riofilme / Zazen Produções Audiovisuais
Direção e Roteiro: Marcos Prado
Site Oficial: WWW.estamira.com.br

USF CÓRREGO DA BICA

Estamira

Tudo é Estamira.
Tudo faz parte de Estamira.
Estamira é assim, vê o mundo e participa dele, muito embora, ao olhar dos outros, tudo o que há nela é loucura. Logo, deveria ser loucura o que ela diz. Mas não, é a verdade.

É verdade que há lixo na gente.
É verdade que nós vivemos para trabalhar.
É verdade que a natureza é insultada.
É verdade que nós mesmos temos raiva do homem.
É verdade que não poupamos nada.
É verdade que nós achamos que aprendemos na escola.
É verdade que nós, muitas vezes, duvidamos de Deus.
É verdade que nos sentimos presos à vida e por isso não somos livres.
É verdade que somos indivíduos eternamente doentes por tudo isso e muito mais.
Estamira não é isso. “Isso são Eles”.

Ela apenas vive no lixo. Incapaz de fazer mal a alguém sobrevive em uma profunda depressão que é resultada de uma vida violenta e repleta de traições. No filme, o ambiente (o lixão de Natal) representa os sentimentos negativos de Estamira pela vida, mas ele não modifica em nada seu espírito. “A terra é indefesa e a minha carne é indefesa. A minha alma não é indefesa não”. Sua loucura a mantém longe do mundo real, seus devaneios são os maiores responsáveis pela permanência dela naquele lugar. Ele a torna mais resistente. Há permanente silêncio nos discursos feitos no lixão. Isso porque só existe Estamira naquele lugar, não em corpo (há outros catadores de lixo), mas em espírito. A voz dela é o que interessa para o diretor porque ela é a pessoa que tem “lucidez nos olhos e é ciente na mente”, ou seja, ela consegue ver dimensões humanas que, muitas vezes, nós não alcançamos. A responsabilidade e a solidariedade do indivíduo para com o mundo é o que cerne as visões de Estamira.

Estamira não vive por dinheiro. ”Dinheiro sou eu que faço”. Ela conhece o prazer do labor e a necessidade do descanso. Ela cita partes da bíblia no filme para argumentar, “Trabalhar, não sacrificar - alimentai o corpo com o suor do vosso rosto, não com sacrifício”. Ela enxerga o péssimo modo de vida dos outros, “os trocadilo”, que vivem trabalhando para consumir mais e mais sem poupar nada. Acumulam muito lixo útil, destruindo, assim, o espaço em que vivem. “Quem economiza tem”, diz Estamira que nos avisa, também, que a natureza não é o espaço, ela é a nossa casa – “O cometa (comandante da natureza) é aqui em baixo, lá em cima é só o reflexo”. Quando nós falamos em preservar a natureza, sempre nos excluímos dela, reservas ecológicas são construídas. Estamira nos lembra que fazemos parte da natureza e mesmo assim temos raiva do próprio homem, homem-natureza. Fazemos mal ao próximo por ganância. “Os trocadilo é tudo coisa ruim” e ela continua: “não tenho raiva do homem, tenho dó... os homem é o trocadilo dos inocentes ao contrário”.

Estamira também tem muito a ensinar sobre conhecimentos gerais. Não se estuda sobre a vida, se vive a vida - “Vocês não aprendem na escola, vocês copiam, vocês só aprendem com as ocorrências”. Estamira aprendeu como a vida pode ser difícil, “não tenho mais dó nem de Jesus nem de escravo”, para as pessoas que não fazem “trocadilos”. Ela deixou completamente de acreditar em Deus porque ele não resolveu o problema de ‘desfazer’ os homens. O problema do mundo é o homem, segundo Estamira – “...a solução é o fogo! Queima todos os ser e põe outro no lugar”. O homem que acha que só porque entendeu seu corpo (“o controle remoto”) pode ter saúde e controlar em curto prazo sua vida. Com um olhar na vida de Estamira se entende que saúde não é o que nós temos. Se Estamira é doente porque é ‘louca’, o que se diz do filho dela? O homem considerado normal, que a abandonou porque estava doente? Ou dos homens que a estupraram? Do marido que a traiu? Dos que jogam comida fora? Dos que jogam lixo na rua? Nós somos tão loucos e tão doentes quanto Estamira. Ela, pelo menos, conseguiu uma lucidez para a paz de sua alma, embora não do seu coração. Este, doente de ódio pelo ex-marido, pelos homens e pelas ‘injustiças de Deus’.

Tendo sido, antes, uma pessoa religiosa, os sofrimentos passados por Estamira fizeram-na uma pessoa descrente. Talvez, a necessidade de acreditar em algo que nos sustente e proteja fez com que ela se colocasse, espiritualmente, em uma posição superior aos demais humanos, uma maneira de se reerguer numa vida desacreditada e injusta. Isolada com o seu poder e com raiva do mundo, Estamira vive e comporta-se, ao olhar dos outros, como uma louca.

A loucura está no fato de nomear e tentar explicar no ‘seu mundo’ o mundo externo. Quereríamos nós que o mundo externo fosse o mundo de Estamira. Seria um mundo bem mais justo, sem excessos e enganações (trocadilhos), porque ela entedia que o gás do lixo fazia mal, assim como os homens trocadilhos de hoje. “...as bolha é tóxico. Tem gente que não se habitoa”, assim como ela mesma não se habituou.

Comunidade José Severiano

No documentário de Carlos Prado, filmado em 2006, Estamira, através da sua ‘’lucidez e inlucidez’’ revela a sociedade tudo aquilo que, muitas vezes, tal sociedade não quer ver. Ela, que ‘’está em todos nós e em todos os lugares’’, reflete nosso modo de vida, nossas incertezas, decisões, e principalmente as conseqüências das nossas atitudes.
Como futuros profissionais na área de saúde, é importante saber que a prática médica não deve enfocar apenas a doença em si, mas sair dos sistemas lineares e partir para uma avaliação mais complexa, a qual envolve os determinantes ambientes,sociais,ideológicos,psicológicos para entender e de fato promover a saúde.
No filme, nota-se a questão do lixo interferindo na vida das pessoas. O destino inadequado dado ao lixo das grandes cidades, como lixões e esgotos a céu aberto, é fator determinante na má qualidade de vida dos indivíduos que vivem em comunidades próximas a tais locais.Esses indivíduos ficam expostos a gases tóxicos, objetos perfuro cortantes, animais transmissores de doenças,como pode ser observado na comunidade José Severiano em Recife, onde leptospirose e filariose são doenças corriqueiras. É preciso orientar essas pessoas sobre os riscos a que estão expostos e também pressionar o governo a tomar uma atitude efetiva que vai além de retirar as famílias desses locais mas sim criar destinos para o lixo dentro das medidas de segurança adequadas junto com a conscientização da população sobre essa questão do lixo.
Outro ponto observado no filme é o fato de que a saúde não é só o bem-estar físico mas também o psicológico.Assim como Estamira várias pessoas que passam dificuldades criam na mente um refúgio para lidar com a realidade.Se não há uma preparação,um cuidado com a mente o indivíduo se distancia da realidade e piora ainda mais sua qualidade de vida, desencadeando doenças como hipertenção e distúrbios mentais comuns em áreas pobres do Recife.
Enfim, através do filme podemos analisar e nos atentar a questões que como diz Estamira ‘’A tua lucidez não te deixa ver’’, tais questões que podem ser atenuadas por nós. O médico não deve agir apenas com enfoque na doença, mas ‘’consciente lúcido e ciente que tem o sentimento’’.